Memórias e histórias - Eponinos, negros de São Mateus

       Meu pai, Sr. Eponino, se foi há 31anos. Homenagem com um trecho do livro de memórias publicado em 2017.



“Como era bonito ver meu pai sair colocando o molho de chaves na cintura. Com aquele semblante sério de responsabilidade. Sabia que estava saindo para cuidar da gente. Ficaram as saudades disso. Lembro com felicidade que, ainda houve tempo, conseguimos conversar sobre livros, sobre o país, sobre os problemas do mundo. Foram nossos melhores momentos.


O desbravador das tarefas do mundo exterior naquele universo familiar, senhor Eponino era um homem de estatura média, pele negra, cabelos castanhos levemente ondulados, sempre lustrosos à brilhantina. Tinha o rosto afilado, boca pequena, olhos de um castanho mais intenso, como folhas secas pelo sol. O quase liso do cabelo, apesar da pele negra, vinha da avó paterna indígena.... 

Assim era Eponino, olhando seu exterior, o que não explicava quem era no seu interior. Tinha suas contradições. Foi homem de esquerda na política, envolvido nos movimentos sindicais. Chegou a fazer parte das fileiras de um partido político, mas, por divergências com velhos companheiros, se afastou, mudou de posição. Argumentava que havia sido ameaçado por eles quando deixara o partido: “sua batata está assando”, diziam-lhe. A verdade é que fez mudança brusca, deu um salto um tanto quanto distante. Digamos, pisou em brasa quente. Pagou seu preço, foi isolado por alguns amigos. Mas continuou se valendo dos próprios talentos.

        Autodidata, teve poucos anos de escola formal, estudou até o terceiro ou quarto ano. Tinha a qualidade de homem muito informado. A imagem de um pai lendo o jornal, diariamente, por muitos anos ficou na minha mente. Nutria grande admiração por ele, quase incondicional, apesar de nossas conflituosas divergências que iam de suas posições políticas aos conflitos domésticos. 

      Teve senso prático. Estivador de profissão e “carreira”, sabia trabalhar como pedreiro. Construiu a própria casa, aos poucos, com a ajuda de amigos. Bateu laje em dia de grande feijoada. Completa, com tudo que é de direito: além do feijão, abóbora, chuchu, carne seca, rabo, língua e pé de porco. Meu pai ostentava um riso largo e, no dia em que bateu laje, comeu a feijoada feita por Maria Pequena com a ajuda das filhas mais velhas....

Assim era Sr. Eponino.  


- “Memórias e Histórias – Eponinos, negros de São Mateus – no Capítulo ‘foi este homem’ , Publicado pela Editora Comunnicar - Santos - https://www.comunnicar.com.br/

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