NÓS MULHERES: ENTRE O SONHO E A VIDA REAL



NÓS MULHERES: ENTRE O SONHO E A VIDA REAL

 

 Na minha infância, otimista, como geralmente são as crianças, sonhava com um futuro feliz. Apaixonar-me-ia por um lindo namorado, com quem me casaria, teria filhos e seria muito amada. É claro, não sonhava sozinha. Mas acompanhada por muitas outras meninas. Repetia, há algumas décadas, os caminhos traçados pelas nossas famílias.

 Também na infância, algumas vezes cheguei a ouvir, “à boca pequena”, sussurradas por adultos, histórias sobre brigas de casais, homens ciumentos que até chegavam a agredir suas esposas. Os adultos murmuravam, porque o assunto era proibido, ninguém podia interferir em briga de marido e mulher. Eu, na minha criancice sonhadora, entristecia. Portadora de pensamento mágico, acreditava que era só os adultos conversarem e tudo ficaria bem.

 Hoje, bem longe daqueles tempos da infância, estou rodeada pelos noticiários dando conta do número cada vez maior de mulheres que são agredidas e até mortas por homens, atuais ou ex-companheiros ou namorados. Não são mais falas sussurradas, como nos meus tempos da infância. Agora são ouvidos em alto e bom som os gritos de dor de mulheres, de meninas. O tempo passou rápido, num piscar de olhos e aquele sonho do passado se tornou pesadelo, do qual é difícil acordar.

É importante não esquecer que, aos sonhos antigos das meninas, correspondia o imaginário dos meninos, que também receberam um modelo de família. Provavelmente seriam homens e maridos respeitáveis, responsáveis, provedores do lar.

 E como já dizia o músico e poeta Raul Seixas, “Sonho que se sonha só / é só um sonho que se sonha só / Mas sonho que se sonha junto é realidade”.

 É como se aquele sonho de criança, aquele modelo de família, fosse uma árvore semeada, regada dia após dia, cuidada com carinho. Dela recolhíamos folhas que caiam e jogávamos no lixo. Podamos para que pudesse crescer forte. E aconteceu. As árvores cresceram e se se multiplicaram. Estão bem enraizadas não só em nossas mentes, mas em nossos corações.

Hoje, já mulher adulta, com certa maturidade generosamente ofertada pelo tempo, entendi que todas e todos nós, em alguma medida, somos cúmplices. Ajudamos a regar e fazer vingar aquelas árvores, transformadas em verdadeiras ervas daninhas, mantidas de pé por muitas mãos. E posso citar algumas delas: a crença na superioridade do homem sobre a mulher, reproduzindo por famílias “de bem” ou não, ou seja, a desigualdade de gênero; o patriarcado, com homens chefes de família, proprietários de bens, proprietários dos desejos e dos corpos das mulheres, das crianças, dos “subordinados”; a presença predominante de homens em lugares de poder no Estado e outras instituições da nossa sociedade, regra geral com ideias conservadoras e machistas, funcionando como verdadeiras barreiras ao reconhecimento de direitos e de igualdade entre gêneros. E mais uma mão poderosa, que são as ideologias de ódio, disseminadas nos últimos anos, onde a violência e o extermínio do outro é a solução encontrada para divergências de opiniões.

A nós mulheres, que temos o poder transformador, que sustentamos o cuidado com a vida, será preciso coragem e força para refazer o plantio de árvores mais saudáveis, com troncos e caules repletos de seiva boa e não de sangue de mulheres vítimas de violência. Árvores com copas e folhas que têm sombra acolhedora e gentil, como o baobá. Que escutem e recebam com afeto, corpos e mentes frágeis e feridas.

Então vamos lá, o protagonismo precisa ser nosso, mas a tarefa é de todos e todas, homens e mulheres. Vamos plantar outras árvores, repletas de bons frutos, como o respeito, o cuidado, amor, humanidade, solidariedade. Vamos transformar antigos, em novos sonhos. Porque, voltando ao músico e poeta, “Sonho que se sonha só / é só um sonho que se sonha só / Mas sonho que se sonha junto é realidade”.

 Crônica originalmente publicada na Revista Voo Livre. revistavoolivre.com.br/2025/03/04/revista-voo-livre-vol-1-no-54-marco-de-2025

 Ana Lucia Santos é escritora, assistente social e professora..   Facebookhttps://www.facebook.com/analucia.santos.16752 ; https://www.instagram.com/analucias100/


 

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