Olá,
amigos,
Penso
que a memória é seletiva e de tempos em tempos elege o que “explode” e dá
sentido ao presente. E aparecem em forma de ficção, de contos,
incrustada numa escrita que de alguma forma continua buscando dar sentido ao
presente.
SOB AS ESTRÊLAS, por
Ana Lucia dos Santos
Vestiu
sua melhor roupa, calça social, camisa também social, meia-manga. Colarinho bem
passado. A mulher da lavanderia foi dedicada desta vez e conseguiu um bom
resultado. Os sapatos pretos estavam bem escovados.
Hoje,
noite de sábado, era de bom tom se apresentar bem para as possíveis candidatas.
Queria namorar, assumir compromisso sério. Considerava-se uma pessoa correta.
Haroldo,
homem negro de estatura média, ia já pela casa dos quarenta anos. Não casara,
pelo menos ainda, mas mantinha acesas as esperanças. O problema é que a
genética não ajudava, já que como sua mãe, os cabelos grisalhos vieram muito
cedo, de forma que estavam praticamente totalmente brancos, fazendo-o parecer
bem mais velho. Não fizera um corte na última semana. A imagem apresentada era
de uma cabeleira redonda, um tanto quanto alta, bigodes espessos, ambos fazendo
um contraste forte com a pele escura. Colocou lavanda, estava bem arrumado,
pensou.
Andou
pelas ruas da cidade. Um olhar mais intenso aqui e ali, dirigido a alguma
mulher que se encaixasse num jeito de moça que sua mãe aprovaria.
Dona
Romana, a mãe com quem sempre vivera, era morte recente. Mulher dedicada ao
único filho e a quem tudo provia. Morreu de repente. Ataque cardíaco. Haroldo
ficou só no mundo, não conhecia outros parentes. Não tinha amigos próximos, era
homem caseiro. Trabalhava como pedreiro. Bom filho, não era de dar desgostos à
mãe. Ela por sua vez não tratou de lhe arranjar um casamento. Se pensou nisso,
não houve tempo de tomar tal providência. Foi-se de repente, sem aviso prévio.
Haroldo
mudou-se, foi para uma cidade maior depois de tamanho revés. O problema é que
não conseguia acertar o passo com as mulheres, que o olhavam desconfiadas.
Pudera, havia dado pra beber. Bebia para tomar coragem, sabe como é. Mas a
coragem não vinha. E aí bebia mais.
Esta
era mais uma das noites em que as esperanças se acenderam para ele. Porém as
horas vão se esgotando, já passando da meia noite, Haroldo ainda na rua e nada.
Bebeu um tanto a mais e por não conhecer direito a cidade receava se perder.
Agora,
no início da madrugada, o cheiro de lavanda já misturado com o da cachaça e do
suor, já não indicava bons resultados. Vai lhe invadindo um sentimento ruim.
Passava e via mulheres, moças risonhas, em grupos. Casais apaixonadas que se
beijavam. Sentiu-se humilhado.
Alcança
o ponto onde pega o ônibus. Vê um grupo de moças que riem. Olha e é olhado por
elas, desconfia. Não sabe se estariam rindo dele ou se de outro assunto qualquer.
Segue o ônibus e seus passageiros para a periferia da cidade. Continuam a
gargalhar, as moças. Revolta-se Haroldo. Está tonto, meio entorpecido pela
bebida, olhar vidrado, pálpebras caídas.
Levanta
e caminha na direção das moças, andar trôpego, cambaleia. Só se dá conta de seu
estado quando está estatelado de frente para as mulheres risonhas, com os dois
braços erguidos em direção a elas. Ia articular alguma frase, perguntar talvez
por que riam dele. Não houve tempo. Elas gritam aterrorizadas.
Outro
grupo de passageiros, rapazes que assistem à cena, corre em socorro das
vítimas. Pulam em cima de Haroldo que fica com uma expressão mais aterrorizada
que a das moças. É atirado ao chão, cai sentado, pendendo em seguida
todo o corpo. Fica estatelado no piso do veículo. Apenas esboçou se defender
dos socos, pontapés e pisões. Continua sem articular palavra, só gritos de dor.
É atirado para fora do ônibus, bem longe ainda do destino final. Cai na
sarjeta, próximo à calçada. Mistura-se à lama e ao esgoto.
De
quebra, os rapazes ainda lhe pegaram a carteira e o pouco dinheiro que
carregava.
O
ônibus segue. Ao longe ouve o ranger do motor e as últimas gargalhadas que
permaneceram em seus ouvidos.
Dói
o peito de Haroldo, os chutes foram fortes. Mas não é esta dor a causa das
lágrimas que brotam e rolam pelo seu rosto. É pela outra dor.
Continua só, na madrugada. E é sábado. Deixa a cabeça pender na calçada. Não
resistiu mais. Nem à dor, nem às lágrimas que agora caem livres, se juntando às
águas da sarjeta.
O
sono chega, as pálpebras pesam, assim como o silêncio da madrugada. Ele inerte
e incrédulo, quase não entende a situação na qual fora envolvido.
Sem resistência dorme a sono solto. Ainda não percebeu as
artimanhas da vida que o rondou, espreitou e agora se instala, transformando
sua existência. Já é parte dos sem número de seres que vagam pelas ruas. A
noite é a sua morada.
Nos dias de hoje,
assustada com o rumo das coisas, imagino situações futuras catastróficas. É
pura distopia, trazida pela insegurança quanto ao que virá.
AGNES E A BRUXA, por Ana Lucia dos Santos
Agnes
recebeu a tia Gertrudes de forma cerimoniosa. Apesar do parentesco, não havia
proximidade entre elas. Até pouco tempo antes de morrer, sua mãe, Madalena, não
havia feito as pazes com a irmã e com nenhum outro familiar. Era como se
estivessem em estações diferentes, transmitindo sinais em linguagens próprios,
que não se encontravam. Sua mãe considerava as irmãs e os pais, pessoas com
idéias fixas, fora do juízo.
Sua
tia, embora não as procurasse, veio ao enterro da irmã. Apesar de ter
permanecido à distância, mostrou-se generosa com a sobrinha que, devido à dor,
pouca coisa ouviu do que a mulher falava, mas se lembrava tê-la ouvido dizer
que voltaria em breve para ajudá-la, principalmente nestes tempos, onde havia
muitas forças do mal rondando a todos, especialmente às mulheres. Agnes não deu
atenção aquelas palavras, natural vindo da tia, sabia como pensava, via nela
certa loucura.
Por
isso a chegada de Gertrudes apenas uma semana depois do sepultamento da mãe, a
surpreendeu. Era uma senhora por volta dos sessenta anos, de pele
clara, macilenta, rosto lavado, sem maquiagem. Cheirava à roupa guardada, à
naftalina, dando ainda a impressão de que vestia roupas demais, sobrepostas.
Trazia uma bolsa grande, o que chamou a atenção de Agnes, que considerou tudo
parte de seu jeito estranho.
Lembrava
das poucas visitas feitas pela tia, quando ainda era muito pequena. E as
lembranças não eram boas. Havia sempre uma discussão entre as irmãs, e o
assunto era o comportamento de sua mãe. A forma como ela levava a vida, fugindo das normas tradicionais, era reprovada por Gertrudes e pela outra irmã,
Jacinta. Esta sequer se dignava a visitá-la. As duas seguiam as regras dos
pais, religiosos fanáticos. Madalena, a mais nova, na fala deles, “se perdeu
cedo”, engravidou de um homem desconhecido que estava de passagem pela pequena
cidade onde moravam. Atribuíram ao jeito sedutor da menina, meio endiabrada, e
não a perdoaram pela “vergonha” que sentiam a expulsando de casa. As irmãs mais
velhas, de cabeça erguida, com suas roupas recatadas abaixo do joelho, cabelos
penteados e presos em coque ou rabo de cavalo, apoiaram os pais, excomungando
todos à Madalena. Tinham suas explicações, bem expressas pela mãe que dizia ter
se arrependido imensamente do nome dado à filha, que era de sua avó, mulher
correta, sem nenhuma mácula.
Acreditava
que o nome teria sido uma predestinação, tendo a filha sido tomada pelos
pecados de Maria Madalena, mulher descrita na Bíblia, que teve sete demônios,
as possessões diabólicas, expulsas do corpo por Jesus. Tinha convicção de que
aqueles demônios foram incorporados pela filha. Assim, só restava expurgá-la
antes que contaminasse as outras, antes que desse mais mostras de que não
passava de uma pecadora, como as bruxas da Idade Média, que foram queimadas.
Pena que não se usassem aqueles métodos agora, dizia. Penitenciou-se até o dia
em que morreu, por não ter percebido mais cedo as inclinações da filha e não
ter contido o demônio.
Aqueles
fatos justificavam o distanciamento. Logo, era natural que Agnes recebesse com
frieza e cerimônia Gertrudes, para ela quase desconhecida, tão pouco tempo
depois do sepultamento. Mandou-a entrar e ofereceu um café com pão e manteiga e
mesmo jantar em seguida, se estivesse com muita fome, já que a mulher devia ter
demorado mais de seis horas na estrada, até chegar ali. Considerou
que deveria estar cansada. Para sua surpresa, Gertrudes aceitou inclusive o
jantar. Só haveria ônibus para sua cidade na manhã seguinte.
Pareceu
a Agnes que aquela mulher com ar sério e desagradável havia premeditado a
situação. Durante o pequeno lanche, disse que tinha uma encomenda para a
sobrinha, não propriamente enviada por ela, mas que teriam muito tempo para
conversar.
Enquanto
tomavam café, Agnes sentia-se desconfortável com aquela presença e ficava mais,
na medida em que a memória vinha, vagamente, lhe trazendo alguns fatos, como o
do dia em que ganhara dela objetos religiosos, dizendo que estes a livrariam de
todo o mal que pudesse alcançá-la no futuro. Comentou sobre o nome da menina,
que não lhe parecia apropriado. Não era um nome cristão, causando na época uma
discussão com sua mãe.
Durante
o jantar, Gertrudes perguntou sobre seus hábitos, o que costumava fazer, no que
trabalhava, se tinha religião, como eram seus amigos. A moça achou-a invasiva,
mas respondeu com poucas palavras.
Agnes
morava com a mãe e tinha um namorado. Trabalhava como gerente de uma loja de
roupas íntimas, lingeries. As amigas da mãe, assim como os seus amigos, estavam
próximos. Tinha também um namorado. De modo que não estava propriamente
sozinha. A mãe estivera internada por dois meses, o que ocorreu depois de um
acidente no bonde onde estava, na descida de Santa Tereza. Lembrou que as tias
não vieram visitá-la, o acidente foi muito noticiado. Ao que a tia apenas disse,
simulando pesar.
- Eu
não sabia.
O fato
é que Madalena não conseguiu se recuperar. Foram muitos os ferimentos e sua
morte já era esperada. Mas o sofrimento foi muito grande.
Depois
de tantas perguntas, Gertrudes iniciou uma preleção, parecendo um discurso já
preparado. Teria vindo como portadora de informações muito importantes e que
gostaria que ela escutasse. Esta era a encomenda que trazia, enviada por Deus,
por intermédio dela. Disse que conversaram muito sobre o assunto na sua Igreja,
havendo concordância de todos do seu grupo, inclusive de sua outra tia,
Jacinta, de que ela pudesse ser salva.
- O
que? Perguntou Agnes, do que está falando? Ao que a tia fez um gesto
com a mão para que parasse, e continuou.
Perguntou
se ela tinha conhecimento do que acontecia agora no país e no mundo. Todos
corriam muito perigo pois os demônios expulsos da terra no passado, voltavam de
tempos em tempos. Agora, assumiram diversas formas. Agora se travestiam de
bondosos, de preocupados com todos, mas o que queriam é afastar o povo de Deus,
em nome da ciência.
Em
outros momentos, os demônios estimulavam comportamento libidinoso, exaltando a
sedução das mulheres através da nudez mostrada na televisão, em cartazes, em
todos os lugares, expressos nas músicas, sem nenhum pudor. O que provocava nos
homens a cobiça e a luxúria, colocando-os aos pés das mulheres, fazendo seus
desejos, como faziam as bruxas no passado. Ou, provocando-os a ponto deles
assumirem comportamento violento contra elas, numa tentativa de extirpar o mal,
matando-as, uma vez que estavam possuídas pelos demônios.
Agnes
fez tentativas de argumentar com a tia que, exaltada, suava, aumentava a voz e
falava com mais veemência, afirmando.
- No
caso das mulheres, as bruxas do passado, de sempre, que foram queimadas,
voltaram nos tempos atuais. A Bíblia previu tudo isso. Sua mãe, Madalena,
infelizmente foi tomada pelos sete demônios que Jesus expulsou de Maria
Madalena. Sei que ela preparava chás, que deixava todos os homens apaixonados
por ela, que a fazia mais bela. Quando morava em casa, cultivava ervas no fundo
do quintal, que não conhecíamos. Tinha fórmulas secretas que não conseguimos
pegar. Ela foi embora antes disse. E sabe lá Deus quantos homens mais ela
seduziu, quantas famílias destruiu.
A essa
altura, Agnes já estava de pé, tentando com o olhar achar onde estavam os
pertences da tia, pensando em mandá-la embora imediatamente. Mas a mulher se
levantou também e continuou, mais exaltada ainda, com os olhos arregalados.
-
Quanto a você, não temos nenhuma dúvida. Agnes é nome de bruxa, alertamos sua
mãe quando você era muito pequena e ela não nos ouviu. Já estava tomada pelo
mal. Vi seus amigos naquela época, observei muita bebida e fumo na casa. Eu e
sua tia Jacinta conversamos muito, vim com a missão de te salvar.
Agnes
foi enfática com a tia.
–Saia
da minha casa agora. Está ofendendo a memória de minha mãe e a mim.
- Não, querida. Afirmou a tia, você é que está possuída pelo
espírito do mal, assim como sua mãe. Só não consegue perceber. Veja o trabalho
em que você está agora. Dissemina o mal e a luxúria, instigando as pessoas, de
certo, a comprarem peças íntimas muito ousadas. - Também prepara chás e oferece
aos que compram na loja?
E continuou:
- No
nosso país, graças a Deus, junto com quem agora está governando, estamos
iniciando um grande combate ao mal. Começando pelas escolas, indo depois para
as casas. Aliás, retomamos a educação no lar, onde os pais sensatos podem
controlar o que os filhos aprendem. Todo o mal deve ser exterminado.
Agnes
já se sentia encurralada por aquela mulher decididamente louca e perigosa.
Associou a tia às notícias na televisão e jornais. De fato, falavam em medidas
punitivas para mulheres que expusessem seus corpos seminus ou nus. Lembrou que
pessoas passavam e olhavam para as vitrines da loja onde trabalhava e diziam
impropérios, eram agressivas. Dois rapazes chegaram a jogar pedras em uma das
vitrines, que ficou estilhaçada.
Foi
então imediatamente na direção da bolsa grande que a tia trazia, pegou o casaco
pesado que ela tinha deixado na cadeira, entregou-os a ela, dizendo:
- A
senhora não fica na minha casa até amanhã, nem mais um minuto. Não quero saber
como vai voltar, que espere na Rodoviária. Pode dormir nos bancos se
quiser, têm muitos por lá. Gertrudes, que estava encolerizada, com o rosto de
um vermelho arroxeado, começou a se acalmar. Pegou a bolsa e se pôs a recolher
seus objetos. Agnes sentou-se exausta, com muita vontade de chorar, tremia todo
o corpo, as lágrimas já escorriam sem que pudesse segurar.
- Está
bem, Agnes, pelo menos eu tentei. Disse Gertrudes.
A tia,
que parecia atender às exigências da moça, virou- se para arrumar suas coisas.
Mas, remexendo no fundo da bolsa, retirou de dentro de um saco plástico, um
pano grande, umedecido e com cheiro forte. Pelas costas, pressionou o pano
sobre as narinas e boca de Agnes, que se debateu o quanto pode, tentou retirar
a mão da tia, mas acabou desmaiando. Gertrudes, a mulher raivosa era de fato muito
forte. Mais do que se imaginava.
A tia
deu um largo sorriso, que se transformou em gargalhada exultante, dizendo em
tom baixo, num misto de alívio e expressão de redenção:
- Agora posso levá-la assim.
Não vai atrapalhar. É só chamar os outros. Deus vai preparar tudo, talvez não
precisemos eliminar minha sobrinha.
Até breve!!
Ana Lucia dos Santos, assistente social,
professora, escreve contos e crônicas; Email: analucias100@gmail.com
Em tempos onde "as pessoas de bem" dominam a cena, os diferentes sofrem as consequências.
ResponderExcluirEssas pessoas só não podem demorar muito dominando a cena, pois a ficção corre o risco de se tornar realidade!
ExcluirMuito bom, expressa a realidade em alguns pontos bjos
ResponderExcluirSim, expressa o que vivemos hoje.
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