DAS MARIAS, QUE NÃO SÃO PEQUENAS.
Uma completaria hoje 100 anos, se
estivesse viva. Não é difícil transformar boas lembranças dos que amamos, em
textos que se eternizem. A letra de uma música cantada apor Caetano Veloso “Mãe”,
é emblemática quando das lembranças desta Maria que completaria 100 anos, minha
mãe. Transcrevo Capítulo do livro "Memórias"
Palavras, calas, nada fiz, estou tão
infeliz...
Eu sou um homem tão sozinho, mas brilhas no que sou.
E o meu
caminho, e o teu caminho, é um nem vais nem vou...
Sou triste, quase um bicho
triste, e brilhas mesmo assim.
Eu canto grito, corro, rio e nunca chego a ti...
Mãe - Caetano Veloso.
Maria
Tiburtina, Maria Pequena no apelido, mas um gigante na vida real, contava
histórias de um tempo de criança e que ficaram gravadas em minha memória. Sua
mãe, minha avó, passou por maus momentos depois que o marido morreu, ainda
muito jovem. Teria apenas quinze ou dezesseis anos. Morte prematura, causada
pelo fato de ele ter comido ovos, versão difundida nos anos seguintes para os
netos. José Clemente, esse era o nome do avô, teria cozinhado ovos, depois
cortado em fatias e fritado. E comer ovo daquele jeito soava a ação destemida.
Que ousadia! Foi fatal. Passou mal, morreu imberbe. Desde então, pelas gerações
seguintes, alimentar-se com ovos, só com muita cautela. Recado transmitido aos
descendentes.
Suas histórias
não paravam aí. Maria Pequena repetia o ciclo, recontando casos já contados por
sua mãe. Minha avó, mais precisamente Maria Aniceta que, para sobreviver,
precisou trabalhar como doméstica em casas de várias famílias. Viviam no
interior de Minas Gerais, cidade de Peçanha - tantas vezes a procurei nos mapas
e não encontrei. Eu acreditava na veracidade das histórias, ricas em detalhes. Em uma das casas em que Maria Aniceta
trabalhou, os patrões queriam ficar com sua filha única, minha mãe. Como cria
da casa, claro, costume no Interior. Isso lhe garantiria um teto, comida.
Certamente como empregada vitalícia da família.
A solução
encontrada por minha avó para que a filha escapasse do destino traçado foi
fugir com a menina, mudando o rumo da história. Avisou à pequena filha, no
futuro conhecida como “Maria Pequena”: – Maria, vamos acordar em silêncio, para
que ninguém possa ouvir - segredou. E assim fizeram. A imagem que ficou, para
aquela menina de sete anos, foi de uma casa ao longe, vista de cima de uma
montanha, que ia ficando cada vez menor, até desaparecer. Uma imagem que
parecia tão real que, como uma fotografia, capturei a cena na minha própria
memória.
Andaram por
dias, não sabiam quantos, a pé, de Minas Gerais até Vitória, no Espírito Santo.
Caminho longo. Encontraram outros grupos de caminhantes e tropeiros. Aceitaram
pequenas caronas, uma delas em lombo de burro. Uma grande e verdadeira epopeia.
A lembrança dessa história contada por minha mãe, desse grande esforço, ficou–
me na mente e acabou marcando fortemente meu futuro, o modo de encarar o mundo.
Lembranças do relato dessa caminhada foram invocadas, por mim, em momentos
difíceis. A força e o espírito de luta das antepassadas, mãe e filha. Avó e
mãe. De esforço em esforço, chegaram a Vitória, onde Maria Aniceta trabalhou em
outras casas. Tinha dificuldades em criar a filha. Acabou por deixá-la algum
tempo em um colégio de freiras. Pouco tempo, mas o suficiente para deixar marcas
na menina.
Desse lugar,
que não há meio de lembrar o nome, vieram os rígidos princípios impingidos por
Maria Pequena, minha mãe, na criação dos nove filhos. A rigidez se traduzia
principalmente em assuntos ligados à moral, vivida por ela naquele colégio.
Mostrar o corpo era proibido em qualquer circunstância, inclusive no banho,
coletivo. As freiras usavam uma criatividade tal, que hoje geraria efeitos
inversos aos pretendidos. Todas as meninas eram vestidas com largas camisolas
brancas de tecido leve e eram colocadas nos chuveiros. Ensaboavam-se por baixo
das camisolas, discretamente, sem expor os corpos. Tratava-se, na verdade, de
um arranjo adequado aos costumes da época para dar conta do recato e da moral,
nada tido como constrangedor...
...Maria
Pequena não sabia como faria para casar, confidenciaria às filhas muitos anos
depois. Onde encontrar um marido? Considerava-se tímida. E era. Não se achava
bela. Talvez fosse, de rosto. Era mulata, pele clara, cabelos ondulados. Rosto
redondo, traços finos, boca bem torneada, com lábios também finos. Pele viçosa,
brilhante, bonita. Sofria por ser pequena: um metro e quarenta de estatura. E
considerava suas pernas, não as coxas, as pernas mesmo, arqueadas, numa pouco
acentuada curvatura côncava. Aos seus olhos rígidos, suas pernas mais se
assemelhavam a uma tesoura. Característica singular que tornaria sua aparência
desprovida de atrativos para os homens. Não casaria jamais, acreditava
piamente. Quem haveria de querer ter como esposa uma mulher com aquelas pernas
de tesoura e as panturrilhas grossas? Já estava com as esperanças quase
perdidas, aos vinte e três anos, em que uma moça no início do século passado já
era considerada em idade avançada demais para casar. Foi quando conheceu, no
Parque Moscoso, em Vitória, Espírito Santo, lugar amplo e arborizado que
acolhia passeios de jovens, crianças e famílias, em finais de semana, o tal
Eponino, da família de São Mateus...
...E casou com
Eponino. Bendito Parque Moscoso, por onde Maria Pequena e Eponino passearam
muitas vezes pelos anos seguintes; a tiracolo, um número cada vez maior de
filhos. Ela não abriu mão, jamais, daquele homem com quem viveu um casamento de
quarenta e três anos. Quase completaram Bodas de Diamante. Se não o fizeram,
não foi pela falta de espírito lutador de Maria para manter o casamento, que
passou por altos e baixos. Ela assustou e enxotou todas as possíveis
“destruidoras de lares”, imaginárias ou reais, que rondaram sua vida. E que
talvez corressem atrás de um Eponino que, com o passar dos anos, manteve
preservado da juventude o gosto pela paixão, fosse por mulheres, por política,
pela arte e, mais precisamente, pela música. ......
...Os filhos
de Maria Pequena sabiam que tinham na mãe um porto seguro. Aceitavam os seus
nãos. Quando falava não, era não. Às vezes, nem falava. Bastava um olhar com o
canto dos olhos apertados, que ficavam pequenos, como que a prometer sérios
castigos em caso de desobediência. Batia com cinta quando achava necessário,
mas protegia quando avaliava que as conseqüências poderiam ser piores, caso o
pai agisse.
Em um
episódio, uma das crianças, ou algumas delas, quebraram o vidro de uma
cristaleira antiga, muito bonita, em que guardava copos e louças pouco usadas,
presentes de casamento. Objeto de ornamentação da sala, bela decoração. Tanto o
móvel quanto o que continha eram considerados preciosos para os pais. Depois do
vidro quebrado com estardalhaço, a mãe, assustada, após repreender os faltosos,
tratou de recolher todos os cacos, tirar o vidro restante e jogar no lixo. Como
o vidro da cristaleira era impecavelmente limpo, na verdade não se percebia que
ele não estava lá.
O tempo foi
passando. Mas algumas semanas depois, o senhor Eponino encontrou tempo para
ouvir sua novela de rádio, programação da época. O problema é que o aparelho
ficava em cima da cristaleira agora sem o vidro, na altura da cabeça do pai
ouvinte. Maria Pequena não encontrou jeito de removê-lo do local. De pé ao lado
da cristaleira, quase acabando o capítulo da novela, num momento de empolgação
se escorou no que seria o vidro do móvel. Desequilibrou-se, caiu em cima de
copos e pratos, quebrando algumas peças de vidro que se estilhaçaram no chão.
Correria para todo lado. Não sobrou um dos filhos sequer na sala. Só se ouviram
os gritos do pai:
– Maria, o que
é isto aqui? O que aconteceu? quem quebrou este vidro?
Culpados e não
culpados fecharam-se atrás das portas dos quartos e foram todos dormir mais
cedo naquela noite. O que aconteceu depois, nunca se soube. Não se falou mais
no assunto.
Dona Maria
Pequena sobreviveu a muitos percalços. Porque de pequena não tinha nada. Era,
sim, uma grande mulher. Anônima, como tantas outras. Não, porém para os que
vieram depois dela, em linha descendente. Não para os filhos que, ainda que não
reconhecessem sua grandeza quando crianças, em parte lhe fizeram jus quando
adultos. A firmeza de caráter, a flexibilidade e a delicadeza, essa herança ela
deixou.
Bom dia Ana. Gostei muito de seu comentário a respeito de nossa avó. Só não sabia dos detalhes. Quanto ao vidro quebrado da cristaleira lembro muito bem. Papai estava escutando o jogo do Fluminense. Tinha bebido, adormeceu em cima da cristaleira e caiu em cima dos copos.Kkkkkkkkkk Todo mundo correu para se esconder. Ficou por isto mesmo. Kkkkkl.
ResponderExcluirAs memórias de família são assim. Cada um dos protagonistas tem uma lembrança específica, que acredita verdadeira. Isto é muito rico!
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